Kerley Carvalhedo

Tudo passa, mas primeiro é preciso viver

Viver não dói. O que dói é a vida que se não vive. Talvez tenha sido um equívoco do poeta Emílio Moura escrever estes versos, pois, viver doí muito, perder pessoas amadas dói mais ainda.

“Viver não dói. O que dói é a vida que se não vive”. Talvez tenha sido um equívoco do poeta Emílio Moura escrever estes versos, pois, viver doí muito, perder pessoas amadas dói mais ainda.

Um grande amigo, com quem há anos compartilho meus demônios me telefonara numa madrugada, em meio a uma de suas crises existenciais, dividira comigo parte da sua angústia, alguns medos, a cólera da vida –, que nada significativo acontecera nos últimos anos em seu cotidiano. Contou-me que naquele dia desejara profundamente a morte, planejara abreviar a vida.

Sua confissão deixou-me sem voz, fiquei desnorteado ao pensar que aquele momento eu poderia estar lendo qualquer frase triste deixada por ele. Sentei-me com o meu amigo à beira do seu abismo naquelas horas tarde da madrugada, junto ao telefone, segurei-lhe a mão, embora não literalmente, mostrei-lhe o vento frio das asas da temível, apontei-lhe os desatinos da condição humana; entretanto, enunciei que é possível o sofrimento em paz, até que a morte venha.

Eu era adolescente quando eu e um amigo de infância sentávamos à beira de um lago, no parque da cidade para atirar pedras e afastar os cisnes que lá viviam. Era um domingo à tarde, como de costume, fui esperá-lo junto ao lago. A noite caiu e ele não veio.

A notícia chegara como um arpão: meu amigo abreviara a vida com apenas um disparo contra si mesmo. Demorei a entender a dimensão do seu sofrimento, demorei ainda mais para voltar ao lago, quando voltei não havia nenhum daqueles cisnes, pareciam estar de luto também. Retornei outra vez sozinho – só havia um cisne, imponente, exuberante – mas não na lagoa, do outro lado, vi-o de longe. Sem dizer adeus, desapareceu.

A morte, rainha da noite, tudo que toca repousa profundamente. Tantos amigos abreviaram a vida, e, eu não fui capaz de impedi-los de tão grande tragédia, senti-me horrivelmente insignificante. Não inventaram palavras para descrever a dor que sentimos ao perder quem amamos. Chega uma hora que o coração se torna um santuário desse vazio imenso.

Existem poucas experiências únicas na vida: os amores, os amigos e a morte; eles não se repetem, embora sejam parecidos, todavia, jamais serão iguais. Um novo amigo pode até preencher um espaço físico, contudo, jamais, preenche o vazio deixado por aqueles que se foram. Um amigo é insubstituível.

Bem sei que um dia tudo irá findar-se, apaga-se o sol, desaparece o sistema solar e a humanidade se vai também. Tudo é temporário, sabemos. Sobre a vida e o amanhã nada sabemos ou sabemos tão pouco.

Apesar de todas as agruras, incertezas e adversidades humanas, a vida tem seus prazeres, seu lado bom que não impede de ser aproveitado, e, que são mais valiosos que qualquer desejo à morte. Se abrirmos a porta e mostrar o que tem dentro de nós, verá que não somos tão bons e nem tão ruins quanto pensamos.

Há aqueles dias que carregamos o medo da vida, e há dias que tememos que a vida acabe logo ali. Ninguém explica esse mistério. Viver é complexo, a finitude humana é brutalmente incompreensível, mas real.

O fim não cabe nas palavras – a morte de alguém que amo sempre me atinge, como me golpeasse com sua foice. Cada amigo que desce à sepultura fria, deixa um pedaço de si e leva consigo um pedaço de mim – a morte é uma ferida sem cura, mas com o tempo dói menos.

Apesar dos meus eventuais fracassos, das minhas incertezas, que existir é estranho, doloroso, e está além do nosso entendimento, acredito no sublime da vida. Encerro parafraseando Emílio Moura: “Viver não dói. O que dói é essa estranha lucidez”. Entretanto, é preciso acreditar mais na vida do que na morte.

Imagem/Pexels