Kerley Carvalhedo

Memórias de um natal

Era véspera de Natal, a família e os amigos me aguardavam para a Ceia, acontece que o mar não estava para peixes, ou melhor, o céu não estava para aviões. O tempo fechara, o aeroporto também.

Era véspera de Natal, a família e os amigos me aguardavam para a Ceia, acontece que o mar não estava para peixes, ou melhor, o céu não estava para aviões. O tempo fechara, o aeroporto também. Na sala de embarque, atento à chamada do meu voo, repentinamente vi no painel o cancelamento de todos os voos daquela tarde, uma intensa tempestade se aproximara, impossibilitando o tráfego aéreo. O tempo só piorava, os fortes ventos arrastavam os sinalizadores na pista de decolagem, a cobertura do estacionamento parecia que ia ser arrancada fora a qualquer momento, o jeito foi aguardar que melhorasse a condição atmosférica e as companhias nos acomodar em algum lugar cômodo para passar a noite.

Com o mal tempo, a espera poderia durar até o dia seguinte. O barulho da chuva se confundia com as vozes que falavam ao mesmo tempo no saguão. No imenso salão lotado de passageiros, num canto havia um pequeno grupo de pessoas, entre elas uma senhora que não parava de falar – relembrara suas aventuras quando era jovem. Aproximei-me, meio distraído, submeti-me a ouvir o que aquela senhora tinha a dizer.

Eu prestava atenção na história que a senhora estava a nos contar, porém, eu também me atentava na esperança de encontrar algum conhecido por lá. Confesso que fiquei triste, me senti deslocado, não aparecia ninguém, e não estava nos meus planos comemorar uma data tão expressiva em um lugar inadequado para festejos. Contestar com a natureza não minimizaria o caos instalado.

As horas se passara, contudo, para meu desespero, o temporal mantinha-se intenso. Chegada à meia noite, eu e o pequeno grupo de recém-conhecidos comemoramos o natal, fizemos uma pequena ceia, quase simbólica, ali, no meio do aeroporto mesmo. Por um momento cheguei a pensar que teria até um “amigo secreto”. Nada mais eu poderia desejar depois da confraternização com pessoas totalmente desconhecidas, eu só ansiava partir rumo ao meu destino.

A senhora voltava a narrar suas saudosas paixões, seu grande amor, que um dia partira para a guerra do Vietnã.

Ela americana, ele europeu – ambos fugiram e se casara aos 20 anos, na basílica de Maria Madalena, localizada na França, onde ele morava. Um dia, ela e o marido fizeram uma viagem a Portugal, o primeiro filho do casal ficara com a mãe dele, que era uma boa avó, mas era destrambelhada – primeiro desastre acontecera quando seguiu a carreira de modelo nos anos 30 e 40, não demorou muito para mudar radicalmente de ideia – dois ou três anos depois da tentativa frustrada de ser modelo ela convertera-se ao cristianismo, onde passou a viver enclausurada num convento do século XI, na Itália. A sua vida religiosa também não demoraria para cair em decadência. Ela já estava na vida religiosa há quase sete anos quando a Madre Superiora Abadessa, decidiu expulsá-la do lugar sacro, descobri que ela e outras cinco Freiras ficam grávidas no Mosteiro que abrigava refugiados – mesmo sem explicação ela deu-se o trabalho de tentar convencer as irmãs que tal gravidez era milagre divino, porém, o convencimento não deu foi enfático. Outra vez ela largou tudo e dessa vez se dedicou exclusivamente aos oito filhos que teve dos seus vários envolvimentos amorosos.

A senhora contava que quando ela e o marido voltaram de Portugal, receberam a notícia que em poucos dias ele deveria partir, pois fora convocado para a guerra.  Assim aconteceu; ele partira na próxima semana, a guerra acabou, ele sobreviveu, e um ano depois ela ficou sabendo que o seu amado tinha…

Antes que ela terminasse o final da história, o aeroporto abrira anunciando a partida dos próximos voos, o meu partiria em poucos minutos também, sai correndo sem saber, afinal, o que acontecera com o seu amado.

Imagem/Pexels