Kerley Carvalhedo

O Anjo e a Cerveja

Para ser exato: foi no domingo passado. Atravessei a Avenida Dom Henrique Froehlich, a famosa avenida da Saudade, por onde seguia minha caminhada de domingo.

Para ser exato: foi no domingo passado. Atravessei a Avenida Dom Henrique Froehlich, a famosa avenida da Saudade, por onde seguia minha caminhada de domingo. Nem me dei conta de que o fim da travessia das duas vias da larga avenida daria de frente para o velho portão de ferro do cemitério — que, por acaso, ainda urrava na ventania da tarde. Por alguma razão, entrei. Talvez visitar o túmulo do meu pai, ou de algum conhecido que dorme eternamente por lá.

Poucos metros após a entrada, acontecia um sepultamento. Pouca gente, pouco choro — uma cerimônia de íntimos. Não fui conferir quem era o novo morador, embora tivesse curiosidade. Contive-me, em nome da elegância e da civilidade. Segui caminhando entre o labirinto de mármores, pisando o chão áspero. Ali, bem no meio, avistei um anjo.

Era alto, suntuoso, com asas imensas. Não estavam erguidas; as pontas baixas quase tocavam o chão. Não era esbelto como o anjo do poema de Adélia Prado, mas carregava nas asas a melancolia de quem protegeu o mundo — e percebeu que o mundo não precisava tanto assim. Estava sentado sobre uma grande pedra fria, de semblante exaurido.

À tarde, quando o sol declina sobre a cidade, o reflexo nas estátuas brancas transforma-as em seres luminosos. De longe, aquele anjo parecia um semideus; de perto, era comum como nós. Sua beleza se perdia nos detalhes da pedra corroída pela passagem do tempo e pelas chuvas ácidas.

Não sei se já disse aqui, mas é conhecida por muitos a repugnância que tenho da morte, embora pense nela sempiternamente. Não temo os rituais fúnebres, nem o cheiro das velas, tampouco os símbolos mortuários. O que tenho é nojo da morte. Sei que é ela quem dá significado à nossa existência — mas é também uma grande piada com a gente. Benditos são os mortos, pois nada sabem. Nós, vivos, é que sabemos demais: sabemos que iremos um dia para lá e que nunca mais participaremos de nada debaixo do sol. Tudo acaba.

Pensei em tudo isso enquanto atravessava o caminho em direção ao portão do outro lado, que dava saída para a Avenida André Antônio Maggi. Antes de sair, olhei pela última vez para o anjo. Ele me lançara de volta o olhar. Atravessei a avenida, em direção ao bar, pensando na cerveja gelada — e naquele anjo parado, com suas asas gastas, que ficara ali, triste e solitário, numa tarde de domingo.