Kerley Carvalhedo

A fuga de um chamado

Nasci em uma família tradicional cristã. Eu devia ter uns 15 anos quando minha mãe resolveu me mandar para uma espécie de seminário evangélico, uma instituição educacional dedicada à formação na preparação cultural, teológica e espiritual de futuros

Nasci em uma família tradicional cristã. Eu devia ter uns 15 anos quando minha mãe resolveu me mandar para uma espécie de seminário evangélico, uma instituição educacional dedicada à formação na preparação cultural, teológica e espiritual de futuros

líderes religiosos de suas respectivas denominações. Confesso que para seguir vivendo de acordo com uma regra religiosa é preciso o mínimo de fé ou vocação. Fé eu tenho até hoje, só me faltou a vocação e a devoção. Para agrado da minha mãe, eu fui.

O local não chegava a ser um mosteiro, porém foi construído fora do perímetro urbano. Por um tempo vivi como um cenobita; no entanto, eu me sentia mais um eremita. Morei lá durante meses – quase como um prisioneiro nas masmorras.

Em torno dos muros existiam comunidades agrícolas, cujo os camponeses produziam parte dos alimentos para os estudantes da instituição. O aposento dos homens ficava de um lado, já as acomodações femininas tinham melhores instalações, melhor iluminação e as paredes cor de marfim. Os pavilhões eram separados por um grande salão de estudos que ficava no meio da sede.

Os estudantes não tinham comunicação com o mundo externo. Os celulares já existiam, mas por conduta e norma da instituição eram todos confiscados. As ligações eram permitidas somente para familiares, aos domingos. Com o tempo limite de dez minutos.

No salão de orações, moços e moças compartilhavam o mesmo ambiente sagrado. Em um desses concílios conheci uma linda jovem de aparência nada religiosa. Trazia um nome tatuado no braço esquerdo. Trazia outro nome tatuado no braço direito, de mulher. E enquanto nos preparávamos para mais uma sessão de estudos, perguntei de quem era o nome do braço direito. Da minha falecida mãe, respondeu. E mostrando o outro acrescentou, esse é da minha filha que faleceu com minha mãe num acidente. O do filhinho, apontou, estava próximo ao pulso. Falecido prematuramente.

Tão jovem e tantas perdas? fiquei surpreso. Viúva também, respondeu completando sua lista de perdas. – Por isso estou aqui, querendo entender o que fiz com Deus para tantas desgraças em uma vida só.

Por duas vezes na semana nos víamos, e assim fiquei sabendo de toda sua história. Nada eu podia fazer para alegrar o seu enlutado coração. Aquela jovem moça se refugiara ali, se protegendo dos seus sofrimentos, das suas angústias. Ela realmente quis se dedicar às coisas de Deus, diferente de mim.

Havia na instituição um jornaleco interno onde eu era cronista diário. As pautas eram essas: o que ocorrera de importância no decorrer do dia, os estudos aplicados e qualquer coisa de relevância e relacionada aos estudos humanísticos. Aprendi muita coisa, não posso negar. Os estudos eram bons, só não aguentava mais aquela rotina de ter que levantar cedo, fazer orações, ler, escrever, estudar, cumprir religiosamente os horários.

Sou um ser humano cheio de limitações, tenho as minhas falhas como qualquer outro ser humano normal. Não existem homens perfeitos. Se um dia existiu, eu não era mais o mesmo de quando ele fora originalmente perfeito.

Preciso deixar este lugar, pensei. Contei o plano para dois amigos de quarto. Concordaram. Juntos planejamos a fuga. No dia seguinte executaríamos a estratégia; e no outro, mal anoiteceu eu já tinha guardado todos meus pertences na mala. Era quase meia noite quando saí da cama sem levantar suspeitas. Arrastei a mala pelos corredores vazios e carreguei-a até à margem do lago, onde meus dois amigos estavam me esperando para me atravessar de barco.

Fugas deste tipo costumam ter um cunho heroico, tanto mais heroico quanto mais arriscadas. Na hora de pôr o plano em prática, o sujeito se metamorfoseia no nosso imaginário, passa a ser apenas o ser humano lutando por sua liberdade, fugir desse tipo de prisão significa escapar da realidade que nada tem a ver com você. Mas, e se desse errado? Por proteção divina não deu.

Grande foi o meu entusiasmo, na travessia do lago, pela fuga de um adolescente que acabara de rejeitar o seu “sublime chamado”. Chegando em solo firme, me despedi daqueles amigos e segui meu destino por uma trilha dentro da mata escuríssima. O lugar era todo murado; contudo, seus muros altos não me impediram de fugir.

Agora os tempos são outros. Soube recentemente que não é mais possível fugir por qualquer parte. Existem câmeras de segurança no local e guardas noturnos que vigiam a grande fortaleza com seus cães farejadores.

No final da trilha, dentro da pequena mata tinha uma passagem para o outro lado. Um buraco no muro. A saída dava numa estrada abandonada, andei alguns quilômetros a pé até chegar à cidade. Horas depois eu estava acomodado na poltrona, ao lado da janela do avião em rumo ao meu precioso e doce lar.

Assustada com minha chegada sem recado prévio, minha mãe indagou-me o motivo de estar em casa antes mesmo das férias de dezembro. Menti dizendo-lhe que o mestre instrutor do nosso grupo sofrera um infarto e fomos dispensados por tempo indeterminado. Ela acreditou até receber a ligação do coordenador geral da instituição contando-lhe toda a verdade sobre a fuga que ele mesmo presenciara do alto da torre que ficava entre os aposentos. Os dois amigos receberam severas advertências por minha culpa. Para minha mãe, ele pediu que não me mandasse de volta. Sem comentar sobre o assunto, nunca mais minha mãe teve a ideia de me mandar a qualquer outro lugar que não fosse de minha concordância.

Imagem/Pexels