Kerley Carvalhedo

Onde a vida acontece

Semana passada, alguém me disse que adorava ler fora de casa, no banquinho da praça. Outro me contou que preferia ir ao shopping sozinho, bater pernas, ir ao cinema. E mais um que o boteco da esquina era melhor que qualquer sala de terapia.

Semana passada, alguém me disse que adorava ler fora de casa, no banquinho da praça. Outro me contou que preferia ir ao shopping sozinho, bater pernas, ir ao cinema. E mais um que o boteco da esquina era melhor que qualquer sala de terapia. E, por falar em esquina, é exatamente numa esquina que sempre vou quando preciso respirar. Faz alguns anos que vou à mesma esquina, só para ver as pessoas transitarem de um lado para o outro, e, de vez em quando, vejo acontecimentos épicos, que ficam registrados na minha memória e nas câmeras de segurança da redondeza.

Na esquina, é onde busco histórias para contar, escrever e vivenciar. Outro dia, eu estava na esquina quando passou um rapaz e me gritou: “Olha ali o tio!” Ficamos eu e ele olhando para os lados, procurando o tal tio do marmanjo. O guri veio me cumprimentar e dizer que tinha sido meu ex-aluno de teatro.

O vai e vem do aglomerado é onde a vida acontece, às vezes nem sempre é tão aglomerado, mas eu estou lá, tendo uma conversa com meus botões. Na esquina, é o ponto de encontro de amigos, é onde nascem os mais alucinógenos pensamentos. É lá que acendo um cigarro quando bate a ansiedade (estou acendendo cada vez menos, juro).

Foi na esquina que encontrei o grande amor da minha vida e foi onde o perdi. Lá, fiz amizades que duram até hoje, e outras não resistiram ao tempo. Perdi as contas das vezes que me perguntaram o que faço na inanimada esquina. É difícil descrever em poucas palavras, nem eu mesmo sei bem. Sinto como se fosse um pedaço da casa, da minha vida. É talvez um santuário de ideias, um canteiro de inspirações. Nunca estive lá para ver as mesmas coisas, sempre acontece algo intrigante. Naquela esquina, há uma fonte de histórias inesgotável para contar.

Já vi casais discutindo, quase indo aos tapas. Vi uns se beijarem daqui, outros a bordoadas dali. Ouvi confidências de duas amigas, que de tão eufóricas mal notaram a minha presença. Na esquina, tem de tudo, até pedido de casamento. No ano passado, meu amigo pediu a namorada em casamento; no início ele disse que não passava de uma brincadeira, mas ela sem titubear foi mais malandra e disse: “Demorou”. Hoje estão casadinhos da Silva. Vai que essa moda pega!

O que um escritor de braços cruzados faz numa esquina com um cigarro entre os dedos em silêncio? É simples: observando a vida acontecer. Ouvi os mais sarcásticos escólios por estar ali. Fui rotulado de louco, fui confundido com garoto de programa, desequilibrado, solitário, estranho, guarda de rua e outros adjetivos que não ouso dizê-los. Não importam o que pensam: o que importa é o que penso. Enquanto eu estou aqui escrevendo, a vida comum da esquina continua acontecendo. Vou lá dar só mais uma espiadinha. Volto já.

Imagem/Pexels