Kerley Carvalhedo

Entrevista – Como escreve Kerley Carvalhedo

Como escreve Kerley Carvalhedo Kerley Carvalhedo é escritor e cronista do Jornal DiárioRS e colunista do site O Segredo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Meu dia começa tarde, quase sempre depois das 10h ou 11h da manhã, às vezes até um pouco mais tarde, isso depende como tenha sido a noite anterior. Durmo pouco, entre 5 e 6 horas por dia, no máximo. Talvez esse seja um dos motivos pelo qual eu estou sempre cansado. Diferente da rotina de quem tem um trabalho formal, eu só trabalho formalmente uma vez na semana: na segunda-feira. Presto serviço de assessoria ao gabinete de uma legisladora do poder público onde moro. Os outros dias eu trabalho no meu escritório, em casa. Além dos serviços de assessoria, escrevo para alguns sites e jornais. Confesso que as primeiras horas depois que acordo éuma batalha, do despertar até estar de pé é sofrível. Basicamente é isto: primeiro vem o banho, depois o café (gosto de preparar meu próprio café), a partir daí começa a correria em seguida. Sou do tipo que gosta de começar o dia em silêncio; antes de ir ao computador, costumo ficar em silêncio no jardim da minha casa e abrir os impressos que chegaram (sou do papel), leio uma ou outra notícia, aí vou para o escritório, organizo minha mesa de trabalho, checo minha agenda e só então começo a trabalhar no computador, até às 14h. Paro para o almoço, faço uma sesta de 1 hora. Em seguida, volto ao escritório e trabalho até às 21h. Dou uma pausa para respirar ou saio para um lanche. Depois disso retomo o trabalho ao computador e vou até à madrugada.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Há alguns anos – antes de ter uma vida agitada: compromisso com palestras, eventos e trabalhos – eu produzia melhor nas primeiras horas da manhã. Porém isso mudou. Uma vez ou outra, costumo escrever uma crônica no período da tarde, mas só acontece quando tenho uma grande demanda de trabalho ou prazo dos jornais quase acabando.  Notoriamente trabalho melhor pela madrugada. Acho que quase todo escritor tem seu ritual para começar sua escrita, eu por exemplo já fui mais disciplinado, mais rigoroso, inclusive me vestia melhor, fechava as persianas. Havia um ritual minutos antes de iniciar o texto. Alguns hábitos ainda continuam, como por exemplo, estar sempre de sapatos fechados, nunca estou de sandálias ou coisa do tipo. Durante a escrita costumo ouvir, em som baixo, óperas ou música clássica como Beethovenou Schubert; outro tipo de som não consigo ouvir, porque me distrai e tira o foco. Procuro desligar de e-mails e redes sociais. O processo da escrita sem dúvida é penoso, a produção do texto escrito é dolorosa; pelo menos para mim, ao menos, não é fácil. Só tenho “prazer do texto” quando ele já está quase pronto. De qualquer modo uma coisa é certa, só trabalho enclausurado.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Gostaria de escrever todos os dias, contudo não funciono nesse ritmo diário planejado, rígido. Escrevo a partir de algo que me perturba, de um assunto que, de algum modo, me escolhe, ou me incomoda. Planejo a hora para começar, pois não tenho necessidade de alguma forma de planejamento do texto, a ideia surge; depois de algum tempo ela matura dentro de mim; só então está pronta para ir ao papel. O lado perigoso da falta de planejamento é que a história pode se tornar complexa, é nessa hora que começo a sentir falta de um esquema, um esqueleto do texto. Quando acontece de a história tomar um rumo diferente, a certa altura, eu costumo a fazer a escaleta do enredo. Atualmente não faço uma escaleta completa, faço apenas uns rabiscos, porque a história normalmente nunca sai como planejado, nunca sei como uma crônica ou um conto vai acabar. Mesmo sem ideias, eu escrevo toda semana; tenho contrato com jornais e preciso cumprir prazos, ou seja, com inspiração ou sem inspiração o texto tem que estar pronto no limite máximo do prazo.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Descrever o ato criativo é muito difícil, porque não é um ato totalmente racional. Você não pode simplesmente escolher um assunto, descobrir como escrever a seu respeito e então sair escrevendo. Gostaria que fosse assim, mas não é. No meu caso, sinto que, de algum modo, o assunto me seleciona. Entre uma leitura e outra, me vem à memória muitas ideias e muitas formas de lidar com elas. E, eventualmente, o que acontece é que aquilo que se aloja na minha imaginação me faz pensar a respeito. E, é aí que me pergunto porque este ou aquele assunto me interessa tanto, e então, é claro, tenho que descobrir esse porquê. Como vê, não é mesmo um processo lógico. Talvez seja um processo instintivo. Sempre que vou escrever, provavelmente, eu já tenha feito uma pré-pesquisa sobre o assunto, dificilmente escrevo e pesquiso ao mesmo tempo. Faço consultas rápidas, mas não a pesquisa em si. Gostaria de fazer um esqueleto do livro, assim como outros escritores fazem. Acho legal esse tipo de arquitetura, porém não sigo a ideia. Uso de outro artifício nesse processo de criação: confio no meu instinto. Simplesmente sento e vejo a coisa acontecer quase que sozinha. É mais arriscado sim, você pode perder muito tempo e ter muito desperdício de trabalho. Até descobrir que gosta ou não da sua história, pode levar umas 50 páginas ou mais e depois ir tudo para o lixo. Acho muito interessante essa confiança no processo da descoberta durante o ato criativo e menos no hábito de pré-planejamento. Começar um texto é sempre muito difícil, terminá-lo é ainda mais.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Eu anoto tudo, todas as ideias que tenho, algumas vezes nem uso. Quando estou sem um assunto para escrever, recorro às cadernetas de anotações. É claro que há travas, contudo não me cobro tanto, às vezes escrevo qualquer bobagem (a crônica permite isso), o importante é cumprir os prazos dos jornais [risos]. Lido com as travas da escrita com a persistência mesmo. Às vezes procuro fazer uma atividade diferente, como vê um filme, encontrar com os amigos, essas coisas triviais da vida. Agora, quando não estou fazendo nenhum projeto, a rotina é outra completamente diferente. A procrastinação é algo que faço demais, o estímulo só vem quando estou próximo do prazo limite. A procrastinação e o ócio é a passagem direta para o fracasso. Para fugir do Word em branco, tomo café, abro a gaveta, atendo ao telefone, mando mensagens, checo as agendas…  É angustiante quando está se aproximando do tempo limite para entregar a matéria para o editor. Acho que isso já se transformou numa rotina para mim. Minha única preocupação é manter a escrita clara e objetiva para que o leitor consiga compreender a finalidade dos meus textos. Minha ansiedade geralmente diminui após uma caminhada ou prática de meditação.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

É relativo a quantidade de revisões, isso depende do tipo de texto e dos prazos. Quando o prazo é curto releio e reviso o texto pelo menos duas vezes. Acho interessante deixar o texto na gaveta, se não estiver com o prazo vencendo, claro. Tenho que revisar o texto e depois desapegar-me dele, caso contrário eu estarei sempre retocando e tentando melhor algum ponto. Costumo publicar meus textos no facebook, lá eu recebo o feedback dos amigos e leitores, é uma ótima ferramenta para você testar seus escritos antes de mandar para o jornal. O grande esforço do escritor mora aí: na reescrita, nos retalhos, nos cortes, nos minuciosos detalhes. Até dizer que o texto está pronto, demora um pouco. Na verdade, eu considero o todo uma arte, mas uma arte que vem de uma estrutura fragmentada. Detesto enfeites na escrita, talvez por este motivo, meus textos tenham cada vez menos palavras. Certa vez comentou a escritora Adélia prado “escrever é cortar!”. Você pode até achar bonitinho o seu achado, mas corte. O escritor tem muitos compromissos como cidadão, mas sobretudo seu maior papel é: escrever bem. Acho que o maior compromisso do escritor é com a estética, eu tenho horror ao banal. O escritor é uma figura que não deve permitir a mediocridade em sua escrita.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Que a tecnologia nos facilitou muito a vida, isso é indiscutível! Sou fã dos avanços tecnológicos. Confesso que existem coisas mais práticas, como ler um livro em formato digital, contudo ainda não me habituei a essas novas hi-techs. A tecnologia mudou a vida das pessoas para melhor, é claro. Por outro lado, perdeu-se um pouco a familiaridade humana. O grande problema da tecnologia, é que ficamos reféns dela. A verdade é que aos poucos nos tornamos escravos do sistema tecnológico. Tenho amigos que só escrevem se tiver um computador, nunca à mão. As pessoas fazem qualquer coisa na internet, quase nunca estão buscando algo para ler. No entanto, agora falando de leitor médio, ele não ver problemas algum com relação à internet, pois usa desse meio para buscar textos mais acessíveis, mas, ao mesmo tempo, não sei se isso vai funcionar com todos no futuro. Mas pensando bem, acredito que o modelo pode formar novos leitores na medida em que ele perceber que não é mais importante desperdiçar tempo com frivolidades. Já disse anteriormente, primeiro anoto tudo em agenda de papel, alguns rascunhos faço primeiro a mão, e por último vou para o computador. Quando não tenho tempo eu abandono os rascunhos à mão e escrevo diretamente no computador. Imprimo tudo que escrevo, guardo num arquivo por data.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

O cronista é um flâner, está sempre passeando em busca das miudezas do cotidiano. Entre as diversas variantes da crônica, uma das mais importantes é a crônica de costumes. Ela não fala sobre política ou sobre inquietações da alma. Pelo menos, não diretamente. Fala de coisas medianas, de assuntos comuns, cotidianos, rotineiros e triviais. Os cronistas são caçadores, que com um olhar aguçado observam atentamente pequenos momentos, mas que revelam importantes características dos homens ou dos tempos. A leitura é um hábito indiscutível para o escritor, impossível escrever sem ler, hoje existem muitos cursos de escrita criativa, até acho legal, mas não adianta muito se não tiver paixão e o hábito de muita leitura. O grande segredo é: quanto mais você escreve, mais você melhora. Não há outra alternativa, é a única forma do escritor afinar seus instrumentos. Há uma vantagem em escrever para blogs e sites, dependendo do público você percebe onde deve melhorar seus erros, pois os leitores estão atentos a esses pequenos deslizes. O lado bom é que você está escrevendo. Essa prática ajuda bastante. Tem muita gente que escreve no Wattpad, sei que é uma excelente plataforma, mas eu nunca escrevi nada lá. Sei de amigos que tem a reação imediata do público. O meu público me acompanha melhor pelos jornais e pelas minhas redes sociais. Boa parte dos textos que escrevi saíram de alguma experiência vivida por mim, ou por alguém próximo a mim. Mas há algo que considero particularmente uma das vertentes para minha inspiração: conversar com pessoas de nível intelectual, sobretudo que saibam articular uma boa conversa. E considero-me fausto por dividir a coexistência e a amizade com muitas pessoas fascinantes.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

O passar dos anos trouxe-me tantas experiências na escrita, sobretudo a forma de usar a técnica narrativa. Já em termos estilísticos, não sei se tanta coisa mudou nos últimos anos, mas com certeza a estética agora é a base da minha escrita. O texto continua simples, limpo, conciso, porém sem nunca perder a elegância. Não me assusta a retórica, a redundância, o que me horroriza é o banal. Se eu pudesse voltar no tempo, talvez eu teria começado pelos contos. Adoraria também ter aprendido a técnica de fazer ficção. É um gênero que me agrada muito, mas não sei fazer até hoje. Não que não goste do que escrevi, até acho que há algumas coisas úteis lá, porém não escreveria algumas coisas que escrevi naquela época.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Antes de qualquer projeto, eu gostaria de não naufragar neles. Temos a tendência de iniciar vários projetos e no decorrer do caminho acabamos deixando de lado ou abandonados mesmo. Mas existe sim um projeto que gostaria de fazer nos próximos meses, contudo, pelo acúmulo de trabalhos, eu não conseguirei dar o pontapé inicial neste ano. Tenho um romance na gaveta há quatro ou cinco anos, preciso terminá-lo para começar o próximo projeto. Tenho um projeto para ser entregue para a Editora Chiado, em Portugal. Espero conseguir concluir o livro (que não é de crônicas) até o final deste ano.

Foto: Geizielle Dias